O tempo dentro de outro tempo
Como um isolamento por COVID se transformou numa questão existencial
E daí que ganhei uma semana de molho em casa porque meu irmão, com quem vivo, contraiu COVID. E vamos de fazer compras para uma semana inteira, e vamos de medo de ter os sintomas a cada dia, a viver como se tivesse dois estranhos na mesma casa se evitando por obrigação. A essa altura já nem sei mais o que pensar sobre ter essa doença, só aceitei e aproveitei os dias de molho forçados, não sem admitir esse freio no meu ritmo me trouxe algumas coisas que já andava pensando.
Meses sem vontade de nada que não fosse dormir desesperadamente de cansaço. Como mágica, as ideias, a vontade de escrever, um tempo dentro de outro tempo onde tudo anda mais devagar, onde tudo volta a se parecer comigo, com o meu ritmo.
Limpo uma coisa de casa vez, posso deixar um resto para amanhã porque tenho um amanhã, finalmente disponho daquilo que mais amo, que é TER O MEU TEMPO PRA MIM, SÓ PRA MIM. A vida e o capitalismo já roubaram demais o meu tempo, me deixa ser egoísta.
Foi nessa que aproveitei o tal do prime day e dei talvez mais dinheiro para o careca do que gostaria, mas comprei uma coisa que queria muito e veio no tempo certo, esse tempo de ter tempo: uma vitrola.
Começou quando achei no sebo uma porção de discos de sambas enredo dos anos 80, coisa preciosa pra mim (vocês já sabem) e para meu irmão, mas não tinha onde tocar. Bom, resolvi isso e agora posso trazer pra casa coisas que por acaso achar aí em sebos e ouvir como antigamente.
Minha visita ao sebo hoje não rendeu muita coisa, mais uns discos de samba e uns três (em sequência, só depois percebi) de Chitãozinho & Xororó, porque sim, fui grande fã deles quando criança/adolescente e de certa maneira ainda sou. Trazer esses discos pra casa foi um apelo da famosa memória afetiva.
Engraçado que fui fã deles quando gostar de sertanejo não era muito bem visto, mas mais ainda: eu me recusava a ser fã de música em inglês que era o que todo mundo fazia.
Curiosamente hoje de novo não quero mais saber de música em inglês, mas por outros motivos. A vida e seus ciclos.
Isso de ter uma vitrola em casa desbloqueia muitas lembranças: a maneira quase automática de se lidar com os discos, como eu fazia quando era criança; a tristeza quando nos roubaram a vitrola e meu pai acabou vendendo a coleção dele e a minha, do balão mágico; a música que dali por diante viria em forma de fitas k7.
Depois de trinta anos pude finalmente ver os encartes dos discos, as fotos, o projeto gráfico. Ler as letras que eu lutava pra tirar de ouvido mesmo em português e anotava tudo à mão em um caderninho (eram outros tempos, jovens. Comprávamos revistas de cifra para violão só por causa das letras que muitas vezes estavam erradas).
Há bem mais de trinta anos eu não ouvia o ruído estático da agulha contra o vinil, e eu logo me vi andando pelas ruas de Santana com minha mãe me puxando pela mão enquanto olhava as várias lojas de discos, todas forradas de cartazes do último lançamento de um certo Michael Jackson e seu Bad.
Ouvir música em vinil é todo um ritual, é parar para realmente ouvir a música, desembalar o disco com cuidado, limpar com uma flanelinha, ouvir tudo na ordem, ir com cuidado buscando a faixa que se quer.
Semanas atrás uma pessoa veio com esse discurso meio coach de “quem não sabe o que quer acaba sendo levado” ou qualquer coisa tonta do tipo. Engraçado que sempre fui uma pessoa de saber mais o que não quer do que o que quer. Gosto de poder dizer não ao que me incomoda, e voltei a dizer mais uma vez.
Mas agora de certa forma já sei o que quero: quero meu tempo pra mim. Quero trabalhar o mínimo sim (já são vinte e cinco anos de vida laboral, pelo amor de Deus, já chega). Quero aproveitar o tempo que ainda tenho pela frente COMIGO, e não enfiando - ou pelo menos enfiando o menos possível - nesse trabalho estúpido que arranjei na minha vida.
Mal saio dessa semana meio surreal e paralela dentro desse mês meio louco e caótico e já tenho um gigante pela frente. Torçam por mim.